Em um mundo corporativo que valoriza a produtividade incessante e a eficiência, há uma tendência a negligenciar o bem-estar emocional dos colaboradores. A pressão para estar sempre bem, motivado e produtivo pode ser avassaladora.
Na psicologia, diversos autores mostram que essa pressão externa pode se transformar em um “self de dever” – aquilo que eu acredito que devo ser para ser aceito – como descreve E. Tory Higgins na teoria da discrepância do self (1987). Quando isso acontece, o sujeito passa a funcionar mais a partir das expectativas externas do que da própria experiência interna, o que abre espaço para adoecimento emocional.
Outro estudioso, Carl Rogers, também apontava que, quando vivemos mais para corresponder às “condições de valor” (o que o outro espera que eu seja) do que para a nossa experiência real, perdemos autenticidade e nos afastamos do self real.
Já Winnicott chamaria isso de formação de um “falso self” – uma adaptação excessiva ao ambiente para não perder o vínculo. Esse é um ponto de partida importante para pensar o sofrimento no trabalho: nem sempre o problema começa na empresa; muitas vezes ele é ativado pela empresa, mas nasce dessa distância entre quem sou, quem devo ser e quem gostaria de ser.
A realidade do bem-estar no ambiente de trabalho
Pesquisas recentes revelam um panorama preocupante sobre a saúde mental dos trabalhadores. Um estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 15% dos adultos em idade ativa apresentam algum transtorno mental, sendo que a depressão e a ansiedade são as condições mais prevalentes. Além disso, a OMS aponta que cerca de 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido a esses transtornos, resultando em um custo econômico global de aproximadamente US$ 1 trilhão por ano em perda de produtividade.
No Brasil, a situação é igualmente alarmante. Segundo uma pesquisa realizada por Paul Ferreira, vice-diretor do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas (NEOP) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP), 43% dos respondentes alegaram que estão com sobrecarga de trabalho; 31% sofrem pressão por resultados e metas; 30% sentem que precisam estar disponíveis o tempo todo; e 27% relatam falta de empatia ou apoio da liderança direta. Essa estatística reflete um cenário em que muitos profissionais enfrentam estresse, ansiedade e outros desafios emocionais relacionados ao ambiente de trabalho.
Quando somamos isso à exigência tácita de “estar sempre bem”, entramos no que Arlie Hochschild (1983) descreveu como “trabalho emocional”: o esforço de gerenciar e até mascarar sentimentos para atender às expectativas da organização. Ou seja: não é que as pessoas não sintam; é que o contexto ensina a não demonstrar.
O papel das empresas na legitimização do sentir
Muitas organizações, ainda que de forma não intencional, fetichizam a positividade. Criam uma norma emocional de que “aqui todo mundo está bem”, e isso faz com que os colaboradores aprendam a performar bem-estar, não necessariamente a vivê-lo. A cultura do “estar bem” é, portanto, muito mais um produto da gestão do que da pessoa. Por isso, as pessoas não falam não só porque lhes falta coragem, mas porque lhes falta permissão. É nesse ponto que a empresa precisa entrar: criando condições seguras para que o desconforto possa ser nomeado sem punição.
As organizações desempenham um papel crucial na criação de ambientes que permitam aos colaboradores expressar suas emoções sem medo de retaliações ou julgamentos. Isso envolve mais do que oferecer programas de bem-estar superficiais; trata-se de cultivar uma cultura organizacional que valorize a saúde mental e emocional de forma genuína e não apenas performática.
Do ponto de vista da psicologia social (Erving Goffman, 1959), isso significa permitir que as pessoas possam, ao menos em alguns espaços, baixar a “máscara de desempenho” e mostrar o self real, e não apenas o self performático criado para a plateia corporativa.
Investir em saúde emocional no ambiente corporativo traz benefícios tangíveis, como aumento da produtividade, redução do absenteísmo e maior retenção de talentos. Além disso, colaboradores emocionalmente equilibrados tendem a ser mais resilientes, adaptáveis e capazes de trabalhar em equipe, contribuindo para um ambiente de trabalho positivo. Mas isso só acontece quando a empresa autoriza a vulnerabilidade e não a penaliza.
A coragem de sustentar o desconforto
Admitir que não estamos bem exige coragem. Brené Brown, em seus estudos sobre vulnerabilidade, mostra que a verdadeira coragem não é eliminar a incerteza, mas entrar nela mesmo assim – isto é, sustentar a exposição emocional. Antes dela, a psicologia humanista e existencial (por exemplo, Rollo May e Viktor Frankl) já afirmava que encarar a própria angústia é condição para uma vida autêntica. No contexto corporativo, isso significa criar espaços seguros (psychological safety, Amy Edmondson, 1999), no qual os colaboradores possam expressar suas dificuldades sem medo de estigmatização, punição ou rotulagem como “pouco engajados”.
Implementar políticas de escuta ativa, oferecer suporte psicológico e promover treinamentos sobre inteligência emocional são passos essenciais para fomentar essa cultura de vulnerabilidade saudável. Além disso, líderes devem ser treinados para reconhecer sinais de desgaste emocional e agir de forma proativa para oferecer apoio.
Lideranças que só reforçam o discurso de alta performance, mas não modelam vulnerabilidade (“hoje eu também não estou no meu melhor”, “estou sobrecarregado”) acabam reforçando o falso self coletivo. Quando a liderança mostra humanidade, ela dá permissão para que a equipe também mostre.
Consultorias especializadas em bem-estar corporativo desempenham um papel fundamental nesse processo. Elas auxiliam as empresas a desenvolver estratégias personalizadas para promover a saúde mental e emocional dos colaboradores. Isso inclui a implementação de programas de apoio psicológico, workshops sobre gestão de estresse, treinamentos de liderança empática e a criação de canais de comunicação eficazes. Esses parceiros externos também ajudam a quebrar a ideia de que sofrimento é “assunto pessoal” e trazem para o nível organizacional o entendimento de que sofrimento muitas vezes éefeito da forma como o trabalho é estruturado, da carga e da cultura – não de fragilidade individual.
Além disso, essas consultorias auxiliam na avaliação contínua do clima organizacional, identificando áreas de melhoria e propondo soluções práticas para criar ambientes de trabalho mais saudáveis e produtivos. Elas ajudam a transformar “coragem individual” em “permissão coletiva”.
Conclusão: o direito de não estar bem
O direito de não estar bem é essencial para a construção de organizações mais humanas e produtivas. Ao reconhecer e legitimar o sentir, as empresas não apenas promovem o bem-estar de seus colaboradores, mas também investem em sua própria sustentabilidade e sucesso a longo prazo. Do ponto de vista psicológico, isso significa reduzir a discrepância entre o self real (“quem eu sou agora”), o self ideal (“quem eu gostaria de ser”) e o self de dever (“quem esperam que eu seja”), como descreveu Higgins. Quanto maior essa discrepância, maior a chance de sentimentos de vergonha, ansiedade e inadequação. Quanto menor, maior a autenticidade e o engajamento verdadeiro.
Por isso, não basta dizer às pessoas “tenham coragem”. É preciso que as organizações digam “vocês têm permissão”. Porque, muitas vezes, o ponto de partida do adoecimento não é a incapacidade individual de lidar com emoções, mas o fato de que o sistema não admite emoção. Criar ambientes que acolham a vulnerabilidade e ofereçam suporte adequado é uma responsabilidade compartilhada que beneficia a todos.
*Lisia Prado é sócia da House of Feelings, primeira escola de sentimentos do mundo. Mais informações no site.

