A rápida difusão de ferramentas de inteligência artificial (IA) — em especial as aplicações generativas — trouxe ganhos tangíveis de produtividade e novas possibilidades de negócio. Mas há um risco pouco observado nas manchetes: quando a adoção de IA ocorre de forma acelerada e sem estratégia de gestão de pessoas, empresas podem minar sem querer o seu próprio “pipeline de liderança” — a fonte de talentos que, ao longo do tempo, alimenta níveis médios e executivos.
O problema
Organizações que implantam IA sem planejamento estratégico tendem a: (1) automatizar tarefas de entrada e de suporte que historicamente formavam experiência e julgamento para futuros líderes; (2) criar descompasso entre níveis da organização quando só alguns usam ou se beneficiam da IA; e (3) negligenciar o desenvolvimento de competências humanas que a IA não substitui — empatia, julgamento moral, coordenação interpessoal e capacidade de liderar mudanças complexas. Essas dinâmicas podem reduzir, ao longo de anos, o número e a qualidade dos profissionais preparados para assumir cargos de liderança.
- A penetração da IA é ampla e crescente. Em pesquisas globais, a adoção de IA em pelo menos uma função organizacional já é majoritária, com aumento contínuo do uso de generative AI em marketing, TI e operações. Isso mostra o alcance da transformação — e por que suas consequências sobre carreiras não são marginais.
- Muitos empregadores ainda não seguem práticas de adoção que preservem talento e competências. Em levantamento da McKinsey, menos de 1/3 das organizações aplicam a maioria das “boas práticas” de adoção e escala (treinamento por função, roteiros de implantação, KPIs), e apenas uma minoria revisa de modo consistente resultados e riscos — lacunas que agravam efeitos colaterais sobre desenvolvimento de pessoas.
- As habilidades demandadas mudam rápido e há prêmio salarial por competências em IA. A análise PwC sobre meio bilhão de anúncios de vaga mostra crescimento acelerado de vagas que exigem competências associadas à IA e um “prêmio salarial” relevante para quem as possui. Isso pode deslocar investimentos de carreira e criar hiatos em trajetórias tradicionais de liderança, se não houver políticas internas de mobilidade e upskilling.
- Gestão de líderes e mid-levels é prioridade — e também fragilidade. Pesquisas de HR mostram que o desenvolvimento de gestores médios é prioridade para RH, mas muitos gestores ainda não se sentem preparados para liderar mudanças tecnológicas e organizacionais. Sem investimento direcionado em líderes de nível médio, as empresas perdem “pontes” essenciais para formar executivos.
- Risco de desalinhamento entre níveis e de rotatividade. Pesquisas sobre comportamento no trabalho indicam que adoções descentralizadas ou experimentais de IA podem acentuar diferenças de produtividade e percepção de valor entre executivos, gestores e equipes — fator associado a insatisfação e maior rotatividade, o que corrói o pipeline de talentos no médio prazo.
Como a adoção não planejada corrói o pipeline de liderança (mecanismos)
* Perda de experiência formadora: se tarefas analíticas e de triagem que permitiam aprendizado prático são automatizadas, jovens profissionais perdem vivência crítica (decisão sob ambiguidade, negociação, gestão de partes interessadas).
* Desvalorização do percurso tradicional: salto salarial para perfis técnicos em IA pode atrair os talentos de base para funções especializadas, reduzindo o “supply” para trajetórias generalistas que historicamente geram líderes.
* Gargalo nos mid-levels: gestores médios precisam traduzir estratégia e apreender novas formas de trabalho com IA; se não preparados, tornam-se um obstáculo estrutural à progressão de carreira.
* Fadiga de mudanças e desengajamento: adoções fragmentadas geram insegurança, percebida como risco de substituição, e aumentam saída voluntária de profissionais com potencial de liderança.
A IA oferece uma oportunidade histórica para aumentar produtividade e criar vantagens competitivas. Mas tratá-la apenas como tecnologia e não como transformação organizacional e de carreira pode gerar um problema estrutural: a erosão do pipeline que garante liderança sustentada no longo prazo. Empresas que quiserem ganhar com a era da IA precisarão, ao mesmo tempo, redesenhar processos e investir de forma deliberada no desenvolvimento de pessoas — especialmente nos gestores médios e nas rotas que formam futuros executivos.
*por João Roncati, CEO da People+Strategy – consultoria brasileira reconhecida e respeitada por seu trabalho estratégico com a alta liderança de grandes companhias. Mais informações no site.

